Nesta quarta-feira (4/12), a Câmara dos Deputados instalou a comissão especial que analisará a Proposta de Emenda à Constituição 199/19, que permite cumprimento de pena após sentença da segunda instância. A PEC é de autoria do deputado Alex Manente (Cidadania/SP).
Além disso, a presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Simone Tebet (MDB-MS), anunciou que a próxima reunião do colegiado, nesta terça-feira (10/12), terá como primeiro item da pauta o Projeto de Lei do Senado (PLS) 166/18, que altera o Código de Processo Penal para disciplinar a prisão após condenação em segunda instância.
Quase todo o debate do tema está voltado para casos penais, de cumprimento de pena em regime fechado em presídio. Mas o projeto prevê a execução da sentença também em casos cíveis e tributários.
A ConJur conversou com operadores do Direito para saber quais as consequências em uma aprovação da PEC. Muitos ressaltam que um dos maiores afetados será o Estado, obrigado a arcar muito mais cedo do que está acostumado com precatórios.
Mas as mudanças nas relações sociais também podem ser profundas. O jurista Lenio Streck afirma que, com a execução de todas as dívidas, “o governo quebraria”. Além disso, cita a insegurança jurídica.
“Alguém perde uma ação do segundo grau, uma fazenda de 3 mil hectares. Vale uma fortuna e você perdeu ela. Ai no STJ consegue uma nulidade. Mas como fica? É uma coisa espantosa essa emenda do deputado. Então, dá a impressão de que o Brasil desaprendeu coisas, por isso que nas faculdades de Direito não ensinam Direito”, critica.
O tributarista Breno de Paula foi enfático. “Um absurdo inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal já definiu que o contencioso administrativo tributário, em todas suas instâncias, é um direito fundamental do contribuinte.”
Para o advogado Cristiano Zanin, que defende o ex-presidente Lula, “o STF já tomou a única decisão compatível com a nossa Constituição, que é a de impedir a execução antecipada da pena”. “Agora existe um movimento que busca pela via legislativa reverter essa posição do Supremo. Primeiro, me parece que essa iniciativa é uma afronta ao STF e suas decisões. Em segundo lugar, essas iniciativas, ao meu ver, são claramente inconstitucionais porque buscam revisar uma cláusula pétrea da Constituição que trata da garantia da presunção de inocência até que haja uma eventual decisão condenatória.”
“Ou seja, a Constituição só admite que você derrube a presunção de inocência se houver uma decisão final condenatória e, consequentemente, dentro desse modelo, me parece impossível você antecipar a pena de alguém que a própria Constituição presume ser inocente”, continua.
“Agora, não bastasse tudo isso, essa iniciativa parte também de um equívoco de análise em termos econômicos para o país. Porque se você permitir pela via legislativa a execução antecipada de uma decisão penal, você também poderá abrir a porta para que execuções antecipadas no campo fiscal, trabalhista e também no campo cível sejam cobradas antecipadamente”, alertou.
“Alguns empresários que afirmam ‘eu sou a favor da execução antecipada de decisão criminal’ não estão percebendo o perigo que está rondando”, disse o advogado à ConJur.
A advogada constitucionalista Vera Chemim ressalta que os valores que remetem ao pagamento de precatórios de natureza administrativa — como por exemplo, indenizações quanto às desapropriações — e na área tributária, os gastos teriam um aumento significativo. Isso colocaria em risco o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal.
“O Estado teria a responsabilidade de fazer face ao pagamento dos valores correspondentes às ações (na hipótese de sucumbência) de modo imediato, o que demandaria a urgente necessidade de se cumprir o orçamento público rigorosamente, quanto ao planejamento e à execução de receitas e despesas correntes e de capital. Mais do que nunca, a Lei de Responsabilidade Fiscal terá que ser respeitada, de modo que o Estado seja capaz de enfrentar esse tipo de gasto, sob pena de se tornar mais uma agravante para o atual estado das contas públicas em todas as esferas governamentais”, afirma.
Mudança no CPC
Renato Moraes, do Cascione Pulino Boulos Advogados, explica que a PEC extingue os recursos especial e extraordinário, substituindo-os por ação revisional especial e extraordinária. Nesse modelo, haveria o trânsito em julgado das ações em segunda instância, e a parte poderia apresentar uma nova ação, de natureza revisional, aos tribunais superiores.
“Essa alteração teria impacto direto no âmbito civil e tributário, pois permitiria que decisões de segundo grau se tornassem definitivas, autorizando a expropriação de bens dos devedores. Atualmente, credores devem prestar caução antes de apropriar do patrimônio do devedor, caso ainda exista recurso especial ou extraordinário pendente de julgamento. Por outro lado, eventual alteração na Constituição deverá vir acompanhada de mudanças no Código de Processo Civil, que foi elaborado de acordo com o regime constitucional atual.”
Ferramenta para procuradores
Sócio do Peixoto & Cury Advogados,Renato Vilela Faria fala que os primeiros casos que vem à sua mente são os de ICMS e como isso pode ser utilizado como ferramenta pelos procuradores para recolher os impostos.
“A rigor, qualquer situação de tributo declarado e não pago, é judicializado automaticamente e, tendo uma condenação em segunda instância, seria uma das hipóteses provavelmente alcançadas pela PEC, independentemente de se tratar de situação evidente de sonegação ou de um caso em que a empresa optou por pagar salários em vez de imposto. Certamente seria uma ferramenta forte dos procuradores para exigirem o recolhimento dos tributos por parte dos empresários.”
Wilson Sales Belchior, sócio do Rocha, Marinho e Sales Advogados e conselheiro federal da OAB, afirma ser “necessário um juízo de ponderação entre a execução de sentença penal condenatória, direito constitucional a ampla defesa e controle de legalidade, afinal suprimir do ordenamento jurídico a uniformização da interpretação da lei federal e da Constituição pode criar imbróglios processuais, hermenêuticos e jurídicos, os quais, segundo a intenção do legislador originário no CPC, não comportam discussão no âmbito de uma ação rescisória”.
A doutora em Direito Civil, Carolina Xavier da Silveira Moreira, sócia da área de Contencioso Cível, do Costa Tavares Paes, explica que hoje já é possível dar início à execução (cumprimento de sentença) após decisão em segunda instância, na área cível. O recurso seguinte à decisão proferida pelos tribunais estaduais e regionais não é dotado de efeito suspensivo, ele só é conferido se for feito um pedido específico nesse sentido, via pedido de medida de urgência.
“Sem o efeito suspensivo, o CPC já prevê o cumprimento provisório de sentença, que, em suma é igual ao cumprimento definitivo, mas tem algumas travas no momento de excussão de bens. Nesse caso, o credor precisa prestar caução, pois, se a decisão for revertida pelo STJ ou STF, o dinheiro precisa ser devolvido, e o até então devedor terá direito a indenização por quaisquer prejuízos que experimentar.”
Gustavo Penna Marinho, sócio da área cível do Mattos Engelberg Advogados, entende que a PEC “atinge diretamente os interesses da Fazenda Pública que, há anos, é o maior litigante do Brasil, e vai ter impacto nos balanços das empresas com a reclassificação de provisões”.
Já Paula Lima Hyppolito Oliveira, sócia da área de penal empresarial do Mattos Engelberg Advogados, ressalta que o PL 166/18 no Senado tem objeto específico e muito mais circunscrito que aquele da PEC proposta pela Câmara dos Deputados.
“Aborda apenas e tão somente as consequências criminais de uma sentença condenatória por órgão colegiado, não obstante haja um contraditório na própria redação da proposta feita pelo Senado. O artigo 283, inciso III, permanece com a previsão de que a prisão só poderá ocorrer em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, ao passo que a emenda proposta para a inclusão do § 3º ao artigo 637 do CPP permite a prisão após o julgamento dos embargos de declaração, dos embargos infringentes e de nulidade opostos. Muito provavelmente, caso aprovada, a discussão irá novamente ser dirimida e analisada pelo STF. Mas é fato que haverá um comando legal, e inconstitucional, a autorizar esse tipo de restrição à liberdade.”
Fonte: Conjur