A recuperação judicial do produtor rural e a mudança da percepção do mercado

4 . julho . 2019

O Conselho da Justiça Federal aprovou recentemente 34 enunciados durante a III Jornada de Direito Comercial, dentre os quais o 97, com a seguinte redação:

“ENUNCIADO 97 – O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido”.

Como é de conhecimento do setor do agronegócio brasileiro, o crédito rural oferecido pelo sistema bancário sempre representou uma parcela pequena do financiamento do produtor, que precisa contar com capital próprio e o financiamento por meio das operações de barter e venda antecipada de suas lavouras para trading companies, usinas e outros offtakers.

Esses financiadores privados obviamente analisam sua exposição de risco ao conceder o crédito ao produtor, levando em consideração o grau de endividamento do mesmo, as garantias de cumprimento das obrigações contratuais oferecidas por ele e o custo de uma eventual medida judicial para perseguição do crédito.

Em relação a este último item, o custo para a cobrança judicial do crédito e o fato de que, para o credor, o produtor rural pessoa física não teria acesso à recuperação judicial senão mediante sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis e após o exercício da sua atividade sob aquele registro resultava em uma percepção mais favorável para a concessão do crédito.

De fato, a exigência de exercício da atividade por tal lapso temporal mínimo de dois anos justifica-se para evitar surpresa para o credor e oportunismo de empresas recém-constituídas que, com reserva mental, contraiam um endividamento já imaginando buscar, na sequência, os benefícios da recuperação judicial. Nesse sentido, a utilização do registro como termo inicial para a contagem de tal prazo é de rigor e não deveria ser excluído para o produtor.

A despeito do enunciado já mencionado, esse tema ainda será objeto de debate no STJ. No cerne dessa discussão está a natureza do registro público de empresas, se meramente declarativo, como querem os advogados que vêm atuando em favor da inclusão dos débitos anteriores ao registro na recuperação judicial, ou se de natureza constitutiva, na medida em que constituiria o marco legal a partir do qual o prazo do exercício da atividade empresarial deveria ser contado.

Neste cenário, o entendimento expressado pelo Enunciado 97 acaba dando sustentação ao movimento de alguns produtores que tomou de surpresa o mercado do agronegócio e certamente terá impacto nas futuras concessões de crédito.

Importante salientar que, nesse mercado, renegociações de dívidas diretamente com os credores sempre foi algo comum, na medida em que as relações entre offtakers e produtores se renovam a cada safra, e a relação entre essas partes sempre foi simbiótica.

No passado, um movimento semelhante de judicialização dos contratos de compra antecipada de soja, chamados no mercado de “contratos soja verde”, acabou por produzir uma forte retração nas operações de financiamentos dos produtores. O que ocorreu naquela ocasião foi que as safras de 2002/2003 e 2003/2004 foram particularmente problemáticas, e o preço da saca de soja no mercado spot disparou, criando uma diferença significativa em relação aos preços previamente definidos nos contratos de compra e venda antecipada. Alegando onerosidade excessiva, fato do príncipe, desequilíbrio contratual, entre outros argumentos, alguns agricultores, especialmente no estado de Goiás, promoveram disputas judiciais sobre o tema e encontraram uma resposta favorável do Poder Judiciário. A consequência imediata foi a redução em 44% de novos contratos de soja verde na safra seguinte, 2004/2005, ainda que a queda nos contratos de barter e outras modalidades de contratos de financiamento tenham reduzido significativamente menos.

A consequência de redução de novos contratos é natural e decorre da percepção do mercado de um risco maior de o produtor não cumprir com sua obrigação contratual, seja entregando soja, por exemplo, seja dificultando a execução das garantias contratuais.

Ainda que a parcela de produtores que efetivamente busquem alternativas ao não cumprimento dos contratos seja pequena (como foi em 2003/2004), o que acaba prevalecendo é a percepção do mercado de aumento de risco, prejudicando diretamente os produtores adimplentes.

Essa mudança da percepção do mercado, aliada às possíveis restrições ao crédito que o novo plano de safra possa trazer, será um cenário catastrófico para o agronegócio brasileiro.

 

Fonte: ConJur.


 

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