No último dia 19.3.2020 foi apresentado o Projeto de Lei nº. 791, pelo órgão do Poder Executivo, com o objetivo de alterar a Lei nº. 13.979/2020, para o fim de instituir o Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle, tendo por finalidade prevenir ou terminar litígios, inclusive os judiciais, relacionados ao enfrentamento dos problemas de saúde decorrentes da COVID 19.
O Projeto de Lei parte da premissa de que o direito à vida tem posição prioritária e destacada na ordem constitucional brasileira, na medida em que todos os demais direitos assegurados pela constituição prescindem desse direito básico.
Dentro desse contexto, o Projeto de Lei visa criar mecanismos que possibilitem afastar situações que tenham o potencial de colocar em risco, direta ou indiretamente, a vida humana, no contexto de exceção em que estamos vivendo. Nos termos do Projeto de Lei, o enfrentamento da COVID 19 demandará a adoção de medidas extraordinárias, que, muito provavelmente, serão objeto de questionamento por parte dos órgãos federais de justiça e controle.
Pensando nesses questionamentos, e com o objetivo de garantir agilidade no enfrentamento desses embates, o Projeto de Lei prevê a criação do Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle, visando buscar a autocomposição nos casos de questionamento das medidas objetivando o enfrentamento da pandemia causada pela COVID 19.
Segundo o Projeto de Lei, a autocomposição, em oposição aos mecanismos colocados à disposição pelo Poder Judiciário, se configura como instrumento jurídico muito mais célere e eficiente, garantindo, com isso, maior segurança jurídica às relações em sociedade, a justificar a sua implementação, enquanto perdurar os efeitos da crise imposta pela COVID 19.
Assim é que o Projeto de Lei propõe condicionar qualquer iniciativa de medida judicial ou extrajudicial de qualquer órgão integrante do Comitê Nacional à prévia tentativa de autocomposição perante o referido órgão. Somente na hipótese de a autocomposição não se fazer possível ou exitosa é que as medidas regulares de solução dos conflitos se farão cabíveis.
Uma vez verificado o cabimento do pedido, caberá ao Comitê Nacional instituir comissão especializada, composta por representantes dos órgãos envolvidos no litígio, com plenos poderes para firmar acordos, para promover a análise e solução do conflito.
Nos termos do Projeto de Lei, o Comitê Nacional deverá ser composto pelos seguintes órgãos, representados por seus dirigentes máximos, a saber: (i) Supremo Tribunal Federal; (ii) Conselho Nacional de Justiça; (iii) Procuradoria-Geral da República; (iv) Conselho Nacional do Ministério Público; (v) Tribunal de Contas da União; (vi) Advocacia-Geral da União; (vii) Controladoria-Geral da União; e (viii) Defensoria-Pública da União.
A critério do Comitê Nacional poderão ser convidados agentes de outros órgãos ou entidades, assim como especialistas na matéria em discussão, com o objetivo de auxiliar os trabalhos das comissões de autocomposição, cujas deliberações serão tomadas por consenso, o que se entende seja por maioria.
O Projeto de Lei, além de duvidoso sob o ponto de vista constitucional, na medida em que objetiva a criação de um Quarto Poder, em manifesta ofensa ao princípio da Separação dos Poderes, inserto no artigo 2º, da Constituição Federal (“CF”), segundo o qual são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, viola de igual forma e contrariamente ao que preceitua, o princípio da segurança jurídica, inserto no art. 5º, da CF.
Com efeito, sob o manto da necessidade de se assegurar o direito à vida, o Projeto de Lei cria um regime de exceção, a se impedir o livre acesso ao Judiciário, em afronta aos princípios constitucionais da separação dos Poderes e da segurança jurídica.
Não fosse isso o bastante, o Projeto de Lei cria um mecanismo específico de suspensão da execução das decisões judiciais proferidas em sede de litígios individuais ou coletivos envolvendo o enfrentamento das questões relativas ao COVID 19, em mais uma nítida e clara afronta ao princípio da segurança jurídica.
É isso o que se extrai da redação do artigo 7-H do Projeto de Lei, onde se lê: “Para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, a pessoa jurídica de direito público interessada ou o Ministério Público poderão requerer diretamente ao Presidente do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior ao qual couber o conhecimento dos respectivos recursos excepcionais, a suspensão da execução de decisão judicial referente a litígios individuais ou coletivos que questionem medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (covid-19).”
O art. 4º, da Lei nº. 8.437/92, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público, estabelece que compete “ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso”, com o objetivo de evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, suspender a execução de liminar conferida “em ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade.”
Disso resulta que se aprovado o Projeto de Lei em questão, decisões proferidas em sede de mandado de segurança ou outras medidas judiciais, objetivando o estabelecimento da ordem no país, como é o caso, por exemplo, dos mandados de segurança impetrados por setores essenciais da economia, assim definidos pela Lei nº. 13.979/200 e pelo Decreto nº. 10.282/2020, com vistas a terem a manutenção do exercício de suas atividades reconhecidas, poderão ser suspensas por simples decisão do Presidente do Supremo Tribunal Federal – e não mais do Presidente do Tribunal ao qual caberia o conhecimento do recurso -, em literal afronta ao princípio da segurança jurídica e do devido processo legal.
O Projeto de Lei, a despeito da roupagem que se apresenta, constitui verdadeira afronta à ordem constitucional do país, podendo selar o início do fim de garantias caras, como da segurança jurídica e da separação dos poderes.
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Louise Emily Bosschart é sócia do Mattos Engelberg Advogados
Fonte: Estadão